GIORDANO MIRANDA DA MATTA (1926-2015)
Um
homem de fé
Capitão Miranda, como
era conhecido no meio militar e carinhosamente chamado por nós, seus familiares,
ou “Seu” Giordano, como era conhecido pelos amigos, foi um homem de fé, no
sentido genuíno do termo: fé na vida, nas pessoas, em Deus. Sua fé era autoconfiante,
serena e, sobretudo, respeitosa para com o outro.
Pela formação kardecista, sempre entendeu o mistério
insondável da vida como tendo uma razão de ser: uma ordem, com a sua hierarquia
de espíritos a movimentar a corrente das encarnações e desencarnações. Na fé
que professava existe um plano superior para além desta vida para onde vão as
pessoas íntegras, boas e queridas. E é lá que, certamente, ele está sendo
recebido agora.
A vida de nosso Capitão foi plena de sentido:
para ele, para as pessoas que ele amou, que o conheceram e que o amaram. Mas sua
vida teve também uma singularidade: cruzou com a história do país de tal maneira
que fica impossível se referir a uma sem a outra.
Resistiu ao Golpe civil-militar de 1964 e foi
cassado pelo regime militar-autoritário. Pouco se sabe sobre esse momento
decisivo de nossa história como povo. Muito menos conhecido ainda é o fato de
que as primeiras perseguições políticas começaram nas próprias forças amadas.
Nosso Capitão era um sargento da Aeronáutica
quando foi perseguido por aderir ao que se chamou na época de “Campanha pela
Legalidade”: um movimento realizado por aqueles que se opuseram à deposição
forçada do presidente João Goulart. Não pegou em armas nem nada parecido.
Concretamente ele esteve presente num encontro de suboficiais no Cine
Piratininga que defendiam a permanência do presidente legal e legitimamente empossado.
Depois de mais de 30 anos de nossa democracia
tateante, hoje isso pode parecer algo banal, mas naquele momento era assumir
enorme risco. Por que então aquele sargento que havia vindo de uma família
humilde de Recife e construíra com muito suor a vida em São Paulo correu esse
risco? Certa vez lhe perguntaram a respeito. Ele disse que era o “justo”.
Foi esse sentimento profundo de justiça que o
motivou a tomar aquela posição e, de certo modo, o guiou por toda a vida, mesmo
naqueles afazeres que se poderia considerar menores, como não ter dívidas,
pagar em dia um funcionário e ajudar ao próximo. Se orientou por esse
sentimento de justiça tanto nos momentos mais prosaicos de sua vida, como nos
momentos decisivos, em que esse sentimento foi mais forte do que as preocupações
com emprego, sobrevivência e mesmo segurança pessoal.
E pagou caro por isso: a prisão militar, a vida
íntima – com esposa e filhos ainda crianças – devassada e a perseguição
continuada (por muito tempo ele não conseguiu arranjar emprego, porque os
possíveis contratantes eram intimidados a não admitir um “traidor”, “comunista”,
“subversivo” etc.). Só é possível imaginar o seu desespero, impedido de ganhar
o sustento de sua família, os sacrifícios e as humilhações a que precisou se
submeter. A sensação de injustiça também o perseguia.
Com muito esforço e determinação conseguiu
reconstruir sua vida. A esposa, os filhos, os parentes e os amigos certamente
ajudaram. A duras penas conseguiu terminar um curso superior (formou-se em
engenharia pela FEI, “a única cabeça branca no meio de tantas morenas”) e
conseguiu um emprego numa fábrica de ferramentas – só um gerente
norte-americano teve coragem de o contratar –, justamente por sua formação
militar que o capacitou a comandar pessoas: “Só sabe comandar quem sabe
obedecer”, dizia ele. Aos poucos ele conseguiu refazer a vida, construir um
patrimônio e ainda ajudar seus irmãos.
Passados mais de 40 anos, já aposentado, teve esses danos minimamente reconhecidos
pelo Estado brasileiro, bem como reparados monetariamente e simbolicamente:
recebeu indenização, aposentadoria pelos anos trabalhados na Aeronáutica e, o
mais importante para ele, foi condecorado com a patente de Capitão.
Por causa dessas duas coincidências, a vida entrelaçada com um momento
decisivo da história do país e a patente de Capitão, nós, sua família, o
homenageamos com o poema Walt Whitman Ó
capitão! Meu capitão!. Publicado em 1867, esse poema ficou conhecido a
partir do filme Sociedade dos poetas
mortos, mas na verdade foi
escrito como uma tentativa de exorcizar a dor pelo assassinato do grande líder
norte-americano Abraham Lincoln, logo depois da Guerra Civil naquele país:
Oh capitão! Meu capitão! nossa viagem medonha
terminou;
O barco venceu todas as tormentas,
[o prêmio que perseguimos foi ganho;
O porto está próximo, ouço os sinos, o povo
todo exulta,
Enquanto seguem com o olhar a quilha firme,
[o barco raivoso e audaz:
Mas oh coração! coração! coração!
Oh gotas sangrentas de vermelho,
No tombadilho onde jaz meu capitão,
[...]
Oh capitão! Meu capitão! erga-se e ouça os
sinos;
Levante-se – por você a bandeira dança – por
[você tocam os clarins;
Por você buquês e fitas em grinaldas -
[por você a multidão na praia;
Por você eles clamam, a reverente multidão de
faces ansiosas:
Aqui capitão! pai querido!
Este braço sob sua cabeça;
É algum sonho [?]
[...]
Meu capitão não responde, seus lábios
[estão pálidos e silenciosos
Meu pai não sente meu braço, ele não
[tem pulsação ou vontade;
O barco está ancorado com segurança
[e inteiro, sua viagem finda, acabada;
De uma horrível travessia o vitorioso barco
[retorna com o almejado prêmio:
Exulta, oh praia, e toquem, oh sinos!
[...]
- Fique em paz, nosso Capitão, você estará
sempre em nossos corações.